quinta-feira, 7 de maio de 2009

CHURRASCO



Churrasco
Nódoa. Nódoa. A minha camiseta branca gruda nas costas fazendo uma mancha transparente. Ando mais rápido. Encaro o sol e vejo um céu em negativo, com nuvens duplicadas, triplicadas, rolos grossos. Calor. Meu buço pinga. Minha testa soa. No vão dos meus peitos escorre uma água salgada e meio oleosa.
Já é meio dia. A sapatilha de borracha fina parece derreter. Observo os carros indo e vindo, queria ser tão rápida quanto um jaguar, ou um guepardo, coisa assim. Os chicletes derretem no asfalto e o sol vai tatuando uma nova cor na minha pele, bronze. Eu quente. Eu apressada, eu com vontades absurdas, com ânsias, com cios dentro de mim. Um alazão de asas douradas corta o céu. Alguém sentado em cima. Olho no relógio de novo. É realmente meio dia e eu estou atrasadíssima.
Olho o céu.Não gosto de rezar. Não gosto de ficar pedindo, pedindo toda hora. Vejo uma fumaça ao longe. É uma fábrica qualquer de alguma coisa qualquer com um monte de gente dentro ralando pra receber uns trocados no fim do mês. De certa forma, tem um pouco de carne humana nessa fumaça. De certa forma é um churrasco de gente que se evola aos céus como uma oferenda dos homens ao criador deles.
E ele gosta disso. Ele se amarra nessas fumacinhas. É uma espécie de torpor, algo assim como uma onda de crack. Quantas vezes não pediu carneiros a Abrãao e como depois o negócio de carneiros, cordeiros imolados foi dando pouca onda,ele foi criando tolerância então pediu o filho do cara. Sim, pediu o filho do cara num altar de pedra, assim no meio da floresta de oliveiras bem cara-de-pau. "Mas meu filho, Senhor?" - perguntou o cara. E ele disse: "amanhã, bem cedinho, com muita manteiga por favor!" .E o coitado foi lá e foi poupado. Nessa hora ele teve dó, né mas depois o que se seguiu foi bem diferente. Porque pensa, pensa no poder dele: poderoso demais, só esticar um braço, jogar um raio e acabar com as mazelas. Mas não, fica dando essa porra de livre-arbítrio pra gente é pra ver a esfolação mesmo. Por exemplo :Jesus sendo crucificado, ele e montes e montes de ladrões de cabeça pra baixo. Joana D´arc, que gracinha que era ela, acabou sendo queimada, ela e mais centenas de mulheres dadas como feiticeiras, centenas de milhares de judeus sendo jogados em valas, cadáveres maias apodrecendo, as virgens sendo oferecidas para a colheita ficar mais verde, mais abundante. Ele poderia ter evitado tudo isso. Não evitou pq não quis, pq gosta. Os corpos são queimados. Uma nuvem grossa de fumaça se eleva aos céus. Como uma sinuosa espiral ela se estica e chega até o nariz Dele. Ele aspira sofregamente. Uma lagriminha de felicidade escorre de Seus olhos. Plim. E vem um torpor delicioso, vem uma dormência tranquilizante. Pronto. Sua ira é aplacada e ele dorme por umas três a quatro horas. Depois acorda e começa tudo outra vez.
Ando mais depressa. Entro no açougue. Por detrás do balcão, um avental manchado de sangue com um homem atrás. O homem é moreno, tem um cabelo cortado à escovinha e é peludo como um urso. O suor escorre pelo seu dorso onde as moscas fazem uma festa infernal, andam por ali sorvendo o sal, sorvendo o óleo e todos os metabólitos do cara. Eu fico vendo o espetáculo até ele se virar e me ver.Ele percebe que estou há um tempinho esperando. Logo me entrega todos os cutelos,o martelo de quebrar ossos, a marreta que esmaga qualquer crânio, os grandes facões, o punhal, o fatiador.O preço é salgado mas eu me rendo a esse mercado negro maravilhoso e pago tudo o que ele quer. Agora tenho que andar depressa pois não quero me atrasar.
Chego em casa. Ponho a chave na fechadura. Este gesto singular me lembra que todas as coisas se introduzem umas nas outras, que maravilhoso. O mundo todo é uma foda ininterrupta. Corro para o banheiro pois Ele é pontual e nunca nunca se atrasa. O chuveiro quente derrama água em meu corpo e vai percorrendo todas as minhas fissuras... cai no chão um líquido saponáceo-suóreo-corporal-viscoso-salgado-oleoso mistura de sabonete, xampu, minhas imundícies e água. Vai lavando o granito e escoando pelo ralo. Saio toda salpicada de água, cheirosa, os cabelos esticados pela lavagem recente .Penso nele, penso nele. O vestido desliza do guarda roupa para o meu corpo. Correndo chego na cozinha.Um cheiro de incenso e rosas. Ele já está lá.
“Sua onipresença às vezes me irrita”. “Vamos logo com isso querida. Não queremos atrasar nosso jantar.” Então abro o freezer horizontal. A peça está lá totalmente congelada. Pesada. Não consigo carregar. Então ele entra em ação. Com muito carinho a pega no colo, como um noivo segurando sua noiva na entrada da nova casa. E a coloca no balcão de mármore branco.
Minha vez. Contemplo. É realmente uma peça muito bonita, grande, branca. Os olhos azuis estatelados com as pupilas dilatadas. O grande cabelo muito preto e muito liso, fazendo curvinhas graciosas e contrastando com a brancura da pedra. Os seios são um pouco caídos mas fartos o suficiente para uma boa sopa. As coxas gordas com algumas veias arrebentadas, mas muito musculosas. Com grande cautela. Sempre cuidado. É um ritual. Com o martelo vou quebrando os ossos no local das juntas, como com os frangos.Ensinamentos de mamãe para desossar. Com gentileza vou cortando os locais das fraturas com o facão. Os membros facilmente se desprendem. Essa operação me salpica de sangue e ele gentilmente vai me limpando com a barra de sua túnica imaculadamente branca. E me olha profundamente lendo meu pensamento. Eu coro e recomeço meu trabalho. Escalpelo a peça. Quantas pulseiras e bordados lindos vou fazer com estes cabelos!! Essas sedas. Siiiim. Agora é a vez de descascar os braços e as coxas. A pele vai se soltando à medida que forço o punhal em movimentos circulares, como com as laranjas. Começa a chover lá de fora. Ele manda um raio para iluminar nosso céu. Céu de belos sacrifícios. Com um corte longitudinal desosso a primeira perna, Ele vai fazendo os bifes. Com um raio acende a churrasqueira da área de serviço. Coloca as carnes num espeto e vai ajeitando. Se inicia o assado. Ele se emociona. Respira sofregamente a fumaça. Plim. Uma lágrima cai. Plim, duas. Plim , três. Percebo suas pupilas, inclusive a do terceiro olho, se dilatando exageradamente. Ele começa a rir. Me puxa para si e me beija na testa. “Minha querida, tu és minha escolhida.”
Vamos beber muita cerveja hoje.
Por Priscylla

2 comentários:

  1. Só vc mesmo, né? Criativa demais, autêntica, inteligente, sarcástica, expressiva... Eu adoro isso aqui.
    Ma

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  2. coisa muito boa sai dessa cabeça sua!
    kátia

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